Lucia Jales – Advogada em Natal

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PÓS-POSITIVISMO, VALORES E INTEPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL PROCEDIMENTALISTA

RESUMO: Os valores políticos são o motor da efetivação dos direitos humanos, observando que as mesmas procuram impulsionar os padrões de interpretação do conteúdo e do sentido desses direitos no âmbito interno da jurisdição constitucional e no âmbito externo à jurisdição, as ideologias são as bases da pressão política sobre a atuação estatal pela efetividade de tais direito.  Filtrar os modelos de concepção ideológica dos direitos humanos em planos de trabalho viáveis discursivamente a fim de ser defendidos procedimentalmente na jurisdição constitucional é o desafio de um diálogo entre um modelo procedimental de jurisdição constitucional e de um modelo ideológico de luta política capaz de ser traduzido em efetivação de propostas circunscritas na esfera de um Estado Democrático de Direito. Dessa forma, mantêm-se o compromisso entre o pluralismo/formalismo procedimental e o discurso aberto possibilitador da reconstrução jurídica de pretensões de poder imiscuídas no processo ao mesmo tempo sócio-político e judicial de efetivação dos direitos humanos.

 

ABSTRACT: Political values are the engine of the realization of human rights, noting that they seek to boost the standards of interpretation of the content of such rights under national jurisdiction and constitutional under foreign jurisdiction, ideologies are the foundations of political pressure on the performance State the effectiveness of such law. Refine models of ideological conception of human rights discourse viable work plans to be defended in procedurally constitutional jurisdiction is the challenge of a dialogue between a procedural model of constitutional jurisdiction and an ideological model of political struggle can be translated into effectiveness of the proposed limited sphere of a democratic State of law keeping, thus the commitment to pluralism and procedural formalism and enabler of open discursive reconstruction of legal claims can interfere in the procedure at the same time social, public and judicial enforcement of human rights.

PALAVRAS-CHAVE: valores políticos; direitos humanos; procedimentalismo

KEYS-WORDS: political values; human rights; procedimentalismo

1. Colocação do problema

O procedimentalismo , entendido como o meio de construção dos discursos jurídico num Estado de Direito pela via da razão discursiva pode ser uma via de absorção dos conflitos sociais e das ideologias políticas na medida em que através do discurso aberto a todos se faz uma tentativa de mediação, evitando uma autonomia radical do sistema político sobre o jurídico.

O compromisso com o Estado de Direito e as ideologias em conflito pode gerar posições radicais: uns, advogando a primazia do político, outros, a supremacia do jurídico-constitucional. Na trilha de Carl Schmitt, defende-se a primeira posição; na senda de Hans Kelsen, coloca-se na posição contrária.

Defender uma autonomia do sistema político sobre o jurídico denota bem a posições marxista e schmittiana, que embora com fundamentos e fins distintos, querem a aproximação da Constituição com os processos de poder, com os processos sociais de contestação e assimilação do Estado a uma ordem concreta de poder.

O conflito entre o ente estatal e as correntes políticas indica os próprios limites do Direito, na medida em que a função política dos direitos humanos implica o reconhecimento da oportunização da igualdade e da democratização através da efetivação dos direitos humanos como possibilidades críticas aos direitos fundamentais positivados. Direitos humanos são um para-além do Estado, são marcos para o julgamento de suas ações e bandeiras políticas de uma fórmula de correção da ação estatal.

A possibilidade de direitos humanos como efeito político da luta social é um campo de construção democrática que, se deve dialogar com os mecanismos institucionais da democracia estatal, importa em saber superar o legalismo que pretende reduzir direitos humanos a direitos fundamentais estritamente positivos; não significa isso que a política que assume as bandeiras ideológicas das lutas por direitos humanos deva romper com a constitucionalidade formal, mas renová-la, pressioná-la a fim de colocá-la na devida cadência de um Estado Democrático de Direito.

O processo de interpretação e de concretização de direitos fundamentais não pode se pautar num paradigma excludente de positivismo, como o positivismo de Kelsen que possuía um conceito restritivo de interpretação normativa, vinculada ao decisionismo afeito à moldura normativa, construído dentro de uma escala de normas e limitando a atividade hermenêutica do juiz a um sistema dominado pela racionalidade técnica.

Críticas ao positivismo jurídico de Kelsen provieram não apenas da ala político-constitucionalista (Schmitt), mas da vertente jurídico-filosófica de matriz lingüística, e foram objetadas de um ponto de vista lingüístico a partir de H. Hart (1989,p.248) e seu conceito de direito como dependente de uma regra de abertura para inserir em um dado ordenamento conteúdos inovadores ou conceder às normas sentidos de aplicação mutáveis, essa regra de abertura foi denominada por Hart de “regra de reconhecimento” (rule of cognition), prevista como o arquétipo moral de uma sociedade a determinar, mediante a interpretação judicial, que conteúdos pode adentra no sistema jurídico, quais podem modificar o sistema jurídico por interpretações atualizadoras e quais deve ser desconsiderados por incompatíveis com a moral dominante.

Como defende Barbarosch (2007, p.206) com fulcro em H. Hart, Kelsen defendia um “positivismo jurídico excludente’, deve haver um positivismo “includente”, que trabalhe na relação entre direito e moral e não pode prescindir dos conteúdos políticos que indicam o preenchimento das normas constitucionais que se formatam a partir de texturas lingüísticas abertas. “O positivismo jurídico includente” é uma visão moderna de jusnaturalismo, onde se separa validez (coerência) de moralidade do direito – havendo na prática judicial a interrelação direito-moral, pois em muitas ocasiões os juízes usam razões morais apartando-se do texto literal da norma quando decidem (BARBAROSCH 2007, p.206).

A partir, portanto,de tal abertura feita pela teoria e filosofia jurídicas, é que se podem colocar valores procedimentalizados em um espaço público, pois os valores de acordo com esses paradigmas de pós-positivismo kelseniano devem ser tratados como objetos lingüísticos, daí volta-se à concepção de uma linguagem jurídica aberta, expressa no espaço da norma descrita como possível de recomposição hermenêutica, não vinculada a um paradigma hermenêutico literalista. Essa nova forma de entender o fenômeno axiológico na ciência jurídica é colocada logo no I Capítulo da “Teoria da Argumentação Jurídica” de Alexy (2001,p.44), após criticar as posições intuicionaistas e emocionalistas sobre os valores e optar pela discursividade racional na condução do problema axiológico, o que a ser ver está mais condizente com nossa a concepção pós-positivista de direito processual e discursivo. O paradigma posto por Alexy sobre os valores é por demais influente na contemporaneidade do Direito e com ele concordam J. Habermas, R. Dworkin e toda uma tradição discursiva da jusfilosofia atual.

Um entendimento filosófico de como se construiu a ordem dos direitos fundamentais abrirá a elucidação da função política dos direitos humanos quanto ao mecanismo de pressões que eles podem exercer de fora (sociedade civil) e de dentro (processo constitucional e suas lides) sobre a jurisdição constitucional.

2. Fundamentação e evolução político-filosófica dos direitos humanos

O sistema de direitos humanos existente não pode prescindir de uma visão mais ampla de sua origem histórica e fundamentação filosófica. O fato é que a transformação do jusnaturalismo racionalista em direito positivo a partir do Estado de Direito republicano pós-revolucionário francês de 1789 implicou sua positividade.

A crença na santificação da lei a partir da “Escola da Exegêse” assumiu uma conotação vinculada ao engessamento hermenêutico do juiz e a busca da finalidade prescrita em lei, supostamente presente no próprio âmbito da mesma, objetivada numa intenção determinada. A lei funcionaria como proteção ao subjetivismo ou interesses específicos defendidos pelo juiz.

Na tradição do jusracionalismo, direitos naturais como ‘liberdade inata’ (Kant), propriedade e liberdade (Locke), busca da felicidade (Hamilton), iniciaram-se fora do Estado como seus elementos críticos, depois da sua positivação (completada com as Revoluções liberais de 1848) e da vitória gradual do constitucionalismo, o conjunto dos direitos naturais corporificou-se legalizado nas cartas constitucionais.

A idéia de uma defesa de direitos naturais, agora positivados, de dentro do Estado e não apenas como obrigação deste de não infringir os mesmos, inicia-se com a jurisprudência norte-americana no caso Marbury v. Madison (1803), onde pela primeira vez o judiciário exerceu o controle de constitucionalidade.

Da tradição estadunidense emerge também a concepção de direitos positivados como garantias do cidadão contra o Estado (HAMILTON 1984, p.520), “direitos-garantia” que instrumentam, possibilitam uma concepção de uma interpretação política no âmbito do judiciário constitucional, contra a “metafísica jusnaturalista” realizada no Estado Estamental e seu “direito divino”, ainda absolutista, majestático (poderes excessivos, ilimitados do poder executivo), e por isso mesmo impositiva ao cidadão.

Assim, gradualmente foi-se entendendo um papel fiscalizatório e ativo do judiciário no controle de constitucionalidade dos atos do Poder Público. O Estado passa a ter uma função não apenas passiva, negativa, de respeito aos direitos naturais positivados, mas também ativa e com o tempo “concretizante” do sentido e eficácia das normas,exercendo um papel criativo de direitos, que é o que o pós-positivismo na linha preconizada por E. Barbarosch e H. Hart defende.

A ‘modernidade jurídica’ iluminista nasceu de um comprometimento revolucionário com a participação popular na formação da vontade jurídica e política (Rousseau), assim como na possibilidade de contestação dos atos de Estado levando à desobediência civil (Thoureau), e até mesmo com a negação radical do Estado (anarquia de Babeauf).

Como situou-se a tradição de contestação de direitos na era pós-revolucionária é questão crucial para entender-se a consecução de autonomia cívica preconizada pelos iluministas, o que em si constitui uma das expectativas e esperanças de ‘progresso’ na Modernidade.

A crítica teórico-política ao modelo burguês de produção e trabalho leva ao surgimento do marxismo enquanto programa ideológico e político revolucionário. O questionamento ao formalismo jurídico burguês como programa revolucionário implica na formação de um bloco político que contestará o núcleo dos direitos naturais positivados nas constituições européias e de ultra-mar, essencialmente liberdade individual e propriedade.

Em textos como “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” (2005); “Crítica ao programa de Gotha” (2005) e “A questão judaica” (2002), Marx direciona seu objetivo de transformação radical do projeto burguês de igualdade formal perante a lei, isso como avanço de uma crítica política e filosófica mais ampla de qualquer pretensão metafísica, religiosa ou racionalista de fundamentação de direitos e da construção da realidade social. Somente haverá direitos no âmbito de uma realidade social, direitos, portanto, provenientes da luta social da classe oprimida (proletariado) contra a classe opressora (burguesia). No projeto de inversão da filosofia hegeliana, desespiritualizando-a e historicizando-a (MARX 2005a, p. 66).

A grande contribuição de Marx foi historicizar, socializar e politizar o projeto de direitos humanos, que passam a ser encarados como conquistas formais e com função ideológica de manter o status quo burguês.

Na verdade, o projeto marxista frisou que a institucionalização de direitos da social-democracia alemã de Lassalle era uma luta política pelo domínio do Estado objetivando um coletivismo socializante da produção econômica e uma emancipação humana das forças estruturais (econômicas) e superestruturais (simbólico-ideológicas) da burguesia.

Marx criticou a educação estatal burguesa, a liberdade de associação e de crença facultadas no Estado prussiano e a assimilação desse projeto estatizante pelo segmento socialista liderado por Lassale (MARX 2005, p. 287).

Na verdade, o encaminhamento marxista da questão dos direitos naturais vai num sentido de des-naturalização dos mesmos, através de sua ‘politização’ e ‘historicização’. Também a titularidade individualista burguesa dos mesmos foi atacada por Marx (2005, p. 287), no sentido de uma coletivização dos mesmos por uma luta política implementadora de direitos para além do próprio Estado burguês, uma luta que culminaria na “Revolução”, por fim suprimindo o próprio Estado.

O movimento de não contenção das contestações políticas pelo Estado e a impotência da legalidade diante da avalanche de politização do início do século XX e seus diversos espectros políticos (fascismo, liberalismo laissez-faire, socialismo real, populismo), transformou a idéia de uma justiça para além do Estado em um mote político impositivo, de dentro para fora da esfera estatal, fazendo com que a ação política legitimasse o desrespeito aos direitos positivados constitucionalmente e conquistados pela democracia burguesa formal.

Expressão cabal da ação política estratégica com o intuito de superar a legalidade formal constitucional é a concepção de política de Carl Schmitt, pois sua lógica de exposição de amigo-inimigo quanto ao arranjo entre sociedade civil e sociedade política indica o soerguimento de uma atividade para além da Constituição e contra o Estado, justificada no embate das múltiplas ideologias conflituosas no alvorecer do século passado.

Carl Schmitt, ainda que com fundamentos ideais extremamente diversos do marxismo, tal qual Marx tinha um projeto de emancipação da política sobre o formalismo jurídico burguês. Sua demonstração da evolução da ditadura, desde Cromwell à ‘Ditadura do Proletariado’, mostra a politização do Estado de Direito imbricada à luta política pela manutenção da soberania interna e externa (SCHMITT 2009, p. 262-263).

Marx (2005a,p.90) preconizou uma função revolucionária à sociedade civil contra a sociedade política (estatal). Schmitt legitima tal postura e resolve na conquista do Estado pelo poder popular de um partido ‘forte’ contra a Constituição formal e seu sistema de garantias individuais a realização da idéia de bem coletivo.

Com Schmitt a politização do judiciário foi legitimada. Na Alemanha, as conseqüências de tal influência se fizeram notar na absolutização dos poderes dos juízes, que afastaram a idéia de uma processualidade na formação da decisão e optaram por um intuicionismo do justo e a busca de uma ‘justiça’ em favor do povo para além das normas formais da Constituição de Weimar (MAUS, 2000).

O fato é que a politização dos direitos humanos leva à superação da formalidade protetora dos mesmos na constitucionalidade. Indica, portanto, uma necessária politicidade que a ideologia do formalismo constitucional positivo pode por vezes engessar em democracia não ativa em termos de cidadania,como se pudesse ser mantida uma neutralidade na condução do processo por parte do juiz, como defendia Kelsen (1984, p.340), admitindo apenas a decisão como meio fundamental de preencher ‘lacunas’ no ordenamento jurídico, na famosa imagem da “moldura da janela”, que é uma metáfora para o “espaço vazio” da norma que deve ser preenchida pela atividade heurística do magistrado, no Capítulo VII da ‘Teoria Pura do Direito’.

Cidadania ativa é lutar pela concretização de direitos humanos. Para isso, é necessária mobilização dos grupos de interesses, que não optem por receber passivamente do Estado prestações públicas e, também, deve existir uma concepção política dos referidos direitos, inevitavelmente ligada a alguma ideologia, meta ou valor político.

A cidadania, tanto em nível inter-pessoal como pessoal-social é uma construção do espaço público enquanto interpretação difusa de direitos fundamentais e humanos, é uma vivência da Constituição vivificada.

Deve haver, portanto, uma função política dos direitos humanos, mas não uma absolutização política no seu manuseio. Em um Estado republicano a cidadania ativa deve ser adequada à busca da manutenção estatal em prol do bem comum, da legalidade, da dignidade humana e da moralidade administrativa, valores centrais numa democracia constitucional.

Nota-se que a “absolutização” da política e da ideologia levam a uma perda da objetivação social de suas próprias propostas. Kant (2004, p. 172) indica a necessidade da limitação jurídica em relação à política no Estado de Direito. Para Kant, a Política se coloca no início do desenvolvimento das possibilidades políticas no Estado de Direito. Fugir disso é desrespeitar as formas jurídicas possibilitadoras das condições políticas.

Os federalistas norte-americanos também perceberam o perigo da politização do Direito ao optarem pela garantia de um conjunto de direitos ao indivíduo no âmbito da carta constitucional estadunidense.

Se os conflitos políticos não se processualizarem judicialmente, a ‘absolutização’ das ideologias políticas assoma perigosa, na medida em que a carga de valores ou de ideologias ‘justas’, “fortes” ou “verdadeiras” coloca em cheque a diversidade de posições políticas em um Estado que, assim, se aparta da igualdade de disputa dos projetos políticos, igualização que somente um espaço jurídico de regulação pode assegurar, esse é o sentido da normatização do Estado de Direito.

Eliminar a burguesia ou certas minorias (judeus, por exemplo) passa a integrar um programa em que a defesa dos projetos de um grupo esmaga toda a sociedade (nazismo) ou estigmatiza elites podendo levar a dissolução do pacto social e do próprio Estado (marxismo).

Os programas políticos anti-republicanos implicam sempre na possibilidade de eliminação do próprio Estado e/ou de minorias sociais dentro dele. Em casos extremos geraram até genocídio, como no movimento nazista. Em termos kantianos, a quebra da autoridade republicana dos limites do poder construído com base no processo legislativo e a afronta à dignidade humana não podem ser aceitos como marcos de qualquer projeto de poder que tenha compromisso com a democracia.

Uma fundamentação política dos direitos humanos pode gerar perspectivas complexas no contexto da democracia. Lutar por direitos humanos pode produzir mobilizações políticas que contestem o próprio Estado de Direito estabelecido.

No entanto, não se pode dizer que direitos humanos não possuam essa função. Pelo contrário, eles podem se constituir na força supra-estatal de avaliação e contestação política de elites que manipulam e dominam o Estado, evitando exatamente que ele seja radicalmente republicano, igualitário.

Um entrelaçamento procedimento jurídico/politicidade dos direitos humanos deve ser o ponto de equilíbrio da democracia. O liberalismo parte da autonomia auto-normatizadora dos cidadãos, implicando a não destinação de valores contumazes, mas a recriação dos mesmos, um ponto de vista político dos direitos humanos. Coloca Walzer (2007, p. 90):

Como diz Rousseau, os cidadãos aplicam as leis a si próprios. Mas eles não podem fazer isso se diversos grupos entre eles já estão vinculados a outras leis,completamente abrangentes e que exigem um compromisso total.

Diz Kersting (1992, p.151) interpretando o pensamento kantiano:

Kant define o direito à liberdade, dado para cada um, como a independência do constrangimento arbitrário dos outros. A mesma orientação para se autodeterminar e para ter a responsabilidade pessoal pela sua própria vida é implicada pelo conceito de liberdade política, pelo conceito de liberdade como princípio legal formativo da comunidade (Tradução livre).

2. O Direito e os valores em mutação

 

Todo Direito é Direito de uma dada sociedade, por isso implica a necessidade de uma cognição histórica da gestação dos fundamentos constitucionais; em oposição a toda a historicidade na formação do direito, de sua vinculação ao ‘espírito do povo’, todavia, existe a razão (logos), que se expressa na tradição da filosofia política como discurso , possibilitador da projeção de normas e da autocrítica da sociedade que gestou o Direito, a exemplo do que se fazia na ágora grega.

Na atualidade Habermas que busca resgatar sob um viés pragmático o princípio do discurso público e se constitui em crítico das pretensões de valor díspares e conflitantes numa sociedade pós-moderna e pós-industrial em transformação progressiva.

Pressupondo a finalidade do Direito como busca por Justiça e pelo Bem Comum em suas acepções concretizadas, porém norteadores da própria conduta na qual se manifestam, ainda que nesse momento não se definam tais valores, a reflexão racional aponta a necessidade de um conceito objetivo e formal de Direito, Justiça e Bem Comum, ao passo que a historicidade força o Direito concreto à própria limitação do circuito histórico que o gerou.

A tensão entre lutas sociais e valores de conservação de elites no âmbito de um dado sistema jurídico se resolve na auto-produção de instâncias jurídicas que buscam a construção do Bem Comum, que enquanto não for comum, isto é, acessível a todos os cidadãos, não será total e verdadeiramente válido (legítimo), mas tão somente formalista.

O desafio para soerguer um Estado de Direito nos moldes definidos no moderno republicanismo democrático (Habermas), se dá no âmbito de uma luta por reconhecimento de diversos grupos sociais e nos quadros da uma pulverização da racionalidade objetiva, fenômeno apontado por diversos analistas da conjuntura da sociedade industrial tardia (HORKHEIMER 2000, p.34). Uma tese “forte” em termos de valores implica no reconhecimento de uma teoria axiológica de bases filosóficas essencialistas, tal como a fenomenologia axiológica de Scheler, que buscou descrever essências de valores, que possuiriam um conteúdo a priori, expressão de um ser-ideal; Scheler opõe-se frontalmente a Kant, alegando que este desenvolveu uma fundamentação formalista dos valores dado o caráter problemático e multifacetado de tal tese, opta-se por uma teoria política dos valores mais afeita ao quadro sócio-histórico-cultural de dadas épocas e suas necessidades políticas do que uma teorização abstrata geral, a qual remete ao paradigma da filosofia política que extrapola as fronteiras de uma teorização filosófica.

Uma concepção “fraca” de valores implica sua contextualização ao nível de um discurso público e acessível à maioria da população nas fronteiras de um senso comum teórico, dentro do contexto histórico presente os valores reportam à democracia como paradigma prévio ao sistema de conceitos que os podem referir. Os significados específicos da teoria dos valores no quadrante político remetem, portanto, ao quadro sócio-histórico democrático no sentido da democracia parlamentar burguesa.

Uma teoria dos valores implica na possibilidade de se realizarem as potencialidades de um povo. Todavia, é necessário o constante auto-esclarecimento, a fim de que se realize a possibilidade do discurso democrático, amplamente considerado em função da participação, critério mor de verificação de que a democracia efetivamente cumpre suas metas. Opta-se, portanto, pela tese ‘fraca’ dos valores, por tirá-los de um pedestal ideal, no intuito de que se pode publicizar demandas e projeções de desejos humanos e confrontar publicamente tais posições e não impor ‘valores essenciais’ às pessoas, descobertos no processo essencialista de uma ‘filosofia da consciência’, que projetas sentidos pela interpretação subjetiva e não intersubjetiva e dialógica (Habermas).

Se o homem é um ser que valora (Nietzsche) e, ao mesmo tempo, ele deve se tornar um transvalorador. O paradoxo posto por Nietzsche, como grande parte de sua filosofia aforística, é de significado amplo e equívoco. Talvez Nietzsche não tenha deixado isso tão claro em sua obra, ou talvez não quisesse assumir esse fato para não recair na possibilidade de um racionalismo estéril segundo ele conceberia, que o homem se transvalora pelo discurso e que este é o instrumento de desenvolvimento da razão e da publicidade. Heráclito, grande inspirador de Nietzsche, já colocara no princípio do discurso a possibilidade de uma adequação do logos ao devir, razão e movimento. Novamente, o paradigma inicial: razão e mutabilidade, implícita a esse último vetor a história como sede das significativas transformações humanas.

O fato é que o discurso se recupera nos momentos de assunção das massas pelos oradores. Foi assim desde a Grécia com Isócrates e sua tentativa de barrar o avanço macedônio; em Roma com César e a ascensão do Partido Popular; o cristianismo, que nasceu sob os auspícios da retórica de Paulo; na Itália com Maquiavel e sua exortação à liberdade e ao nacionalismo republicano, retomada séculos depois pelo romântico Garibaldi. Enfim, na era populista, Vargas e Perón, representaram, ao lado de Hitler e Mussolini, líderes que engrendraram um discurso de comoção pública.

No caso brasileiro, por exemplo, analisando o fenômeno Vargas, vê-se que as bandeiras por ele defendidas eram completamente necessárias à modernização política, cultural e econômica do país, todavia, da forma que desencadeadas, as transformações sociais implementadas geraram o predomínio das elites que ainda na atualidade comandam a política no país (oligarquias nordestinas, classe média alta conservadora urbana etc.), impedindo por muito tempo o livre desenvolvimento do sindicalismo urbano, dos movimentos rurais populares etc., as quais não puderam se soerguer devido exatamente a uma ausência de efetiva participação da população no processo político, isto é, de uma efetivação da democracia como ideal concretizável.

Observa-se historicamente a dificuldade no Brasil de se exercer o controle da Administração Pública e sua atividade política implica uma pressuposição crítica à doutrina da separação dos poderes, erigida no âmbito do constitucionalismo europeu no século XVIII.

Na verdade, o iluminismo e seus próceres conceberam uma separação entre os três poderes e também entre a atividade política,exercida pelo Legislativo e o Executivo e a atividade judiciária, exercida pelo Poder Judiciário como ultima ratio da seara jurídica.Essa se constituía na genuína concepção política liberal de um Estado de Direito.

Na verdade, esse modelo sustentou-se no decorrer da fundamentação do Estado Liberal até meados do Século XX. Quando, devido à Crise de 1929 exigiu-se a inserção do Estado na economia e, ao mesmo tempo, uma resposta do judiciário aos reclamos sócio-econômicos, papel que a Suprema Corte dos EUA desempenhou dentro de um paradigma de realismo jurídico e de ativismo judicial assegurador de direitos sociais e laborais através de políticas públicas, passou-se a imiscuir juízos de valores político-sociais no âmbito da argumentação jurídica justificatória das decisões constitucionais. O plexo de fundo sócio-político que emergiu com as Constituições Sociais a partir da Carta alemã de Weimar (1919) influenciaria o judiciário constitucional em diversos países.

O Direito brasileiro em vez de se constituir em espaço público que pudesse promover o desenvolvimento da dignidade do indivíduo, e de comunicação discursiva capaz de gerar transformações sociais como no modelo de discurso e sua práxis transformadora (Habermas), mostra-se um espaço colonizado pela tecnocracia, pelas elites políticas aliadas às elites econômicas, que facultam uma democracia formal e não política, deteriorando o discurso político, sufocando a práxis democrática.

O Estado há que possuir um norte político como defesa de valores, principalmente o republicano e a dignidade humana, que se direcionem por um conceito de justiça a um tempo formal (conceito de igualdade e liberdade da justiça segundo Kant) e discursivo-procedimental (segundo Habermas).

A defesa de direitos fundamentais remete a uma complexa rede de interligações e funcionalidades que conectam valores a princípios constitucionais e destes às normas constitucionais de modo a assegurar a instrumentalização das valorações políticas de base da Constituição. O pressuposto ontológico, ou seja, o núcleo de existência da Constituição pressupõe-se como sendo os valores que a fundamentam e norteiam sua legitimidade.

Deve-se, assim, realizar a ultrapassagem das concepções “metafísicas” de valores (religiosos, etnocêntricos) pela acepção política de uma valoração constitucional, onde, dessa forma, se encontra a defesa da posição de Schmitt, de que os valores devem ser transformados de objetos com um ser em si ideal, como entendeu Scheler, a objetos postos pelo discurso como concebe Habermas, colocando a dignidade e a liberdade como núcleos de qualquer sistema axiológico-constitucional.

Debater a fundamentação e a função dos valores constitucionais implica a possibilidade de uma esfera de concretização que seja direcionada para a ‘pragmática discursiva’ na linha de Habermas, e por uma defesa da ética do Estado e dos indivíduos, na inspiração kantiana, sem, contudo, recair no senso comum de uma argumentação salvacionista dos direitos fundamentais nem na pretensão de se encontrar a metodologia ‘excelente’, que indicaria o caminho mais apto a uma efetivação de tais direitos.

O primeiro passo, portanto, é assegurar uma ação de cunho concretizante dos direitos fundamentais que articule o compromisso de manutenção dos valores de legitimação da Constituição, pelos quais ela foi por assim dizer constituída, com os encaminhamentos prático-argumentativos das necessidades específicas reveladas na fundamentação de caráter aberto a novos valores no curso das transformações históricas.

Os valores que legitimam a democracia constitucional são, por excelência, os da República, da Igualdade, Liberdade, Paz, Democracia, Dignidade Humana, enfim, os essencialmente circunscritos aos artigos 1º a 3º da Constituição Brasileira de 1988, os quais, quando acessíveis a todos os cidadãos, são o esteio de construção de uma sociedade mais livre, justa e democrática, sem a tutela de poderes constituídos de modo autoritário.

4. Direitos humanos, direitos fundamentais e jurisdição constitucional

A formação da concepção política dos direitos humanos implica na ideologização das posturas e escolhas dos indivíduos no espaço público, cujo núcleo em um Estado de Direito é a jurisdição constitucional, ela é o local privilegiado do espaço público numa democracia constitucional (RAWLS 2000, p. 233).

Pela procedimentalização discursiva das ideologias políticas, a discussão no espaço público de seus fundamentos, seja nas ações judiciais ou na conseqüência do debate sobre decisões proferidas na jurisdição constitucional, busca-se discutir fundamentos ideológicos das pretensões de poder.

O espaço político como conflituosidade não se transforma em objetivação normativa resolutória dos conflitos, mas propaga uma desagregação social que antes favorece do que soluciona as desigualdades, pois o grau de objetividade discursiva e normativa é insuficiente para a proposição de projetos coletivos.

A luta política é mais um farol do que um porto seguro. A segurança das relações sociais só surge na procedimentalização jurídica dos anseios sociais. A política, todavia, é a tarefa incessante de crítica pública que serve de bússola para a desenvoltura da ação estatal.

Na prática democrática a justiça constitucional é o espaço decisório e reconstrutivo de normas e de valores, preenchido por práticas culturais, tradições históricas, discursos críticos e inovadores que informam a atualização de conteúdos na práxis jurídica.

Ideologias políticas possuem uma dupla função: criticar e impulsionar o direito de fora e, por dentro, servir de base axiológica e lingüística de densificação de programas normativos constitucionais de textura aberta. Deve haver uma discussão constante das estruturas lingüísticas e simbólicas componentes dos valores políticos no âmbito da justiça constitucional.

Procedimentalismo não significa ausência de valores, mas constante re-avaliação e discussão sobre valores tendo em vista a liberdade de proposição discursiva, a dignidade dos sujeitos e o pluralismo de idéias e de existência dos grupos em conflito. Como coloca Rawls (1980, p. 519):

Aquilo que justifica uma concepção de justiça não é o fato de ser verdadeira em referência a uma ordem que nos antecede e que nos é dada, mas sim a sua congruência com a mais profunda compreensão de nós próprios e das nossas aspirações, bem como o fato de percebermos que, conforme à nossa história e às tradições assentadas em nossa vida pública, não se trata da concepção mais razoável a nosso ver. Não podemos encontrar melhor privilégio para o nosso mundo social. O construtivismo kantiano advoga que se deve compreender a objetividade moral em termos de um ponto de vista social construído de maneira adequada, de forma a poder ser aceito por todos. Para além do procedimento que leva à construção de princípios de justiça, não existem fatos morais. (Tradução livre e grifos nossos)

Direitos humanos enquanto pretensões de normatividade devem ser positivados em direitos fundamentais, mas tal não significa que esgotem seus potenciais axiológicos em tal movimento de formalização. O formalismo é uma possibilidade de aproximação discursiva de valores em conflito, que é a função do procedimentalismo na jurisdição constitucional.

Des-substancializar e discutir fundamentos de valores e construir fundamentos em termos de procedimento discursivo é a tônica de uma jurisdição constitucional que desfaz ideologias em termos de não conflituosidade radical, porém dentro de uma racionalidade discursiva efetivada nas formas jurídico-procedimentais.

Diante da dificuldade de projetos racionais e/ou metafísicos que não são mais reconhecidos pela maioria das pessoas, e isso remete a questão mesma da pragmática dos sentidos de comunicação como aponta Habermas, o que assegura a legitimidade e universalidade do Direito é o procedimento jurídico-discursivo, oriundo de uma racionalidade comunicativa e acessível a todos, portanto, de um discurso democrático.

O conteúdo jurídico do princípio da dignidade humana como norma-valor central da constitucionalidade tem a função de definir, dentro de uma acepção kantiana, a autonomia dos sujeitos. Diante do problema: quem é o humano titular dos direitos humanos ? É o sujeito definido como o portador da autonomia.

Na questão do direito humano à vida, por exemplo, quem é o titular do direito de autonomia caso se discuta o abortamento fetal : é o fato gerado ou a progenitora ?

O procedimentalismo constitucional pode discutir tal aporia de definição e decidir o sujeito de direito a ser protegido em sua dignidade. Diante da falência dos projetos de definição do que seja a natureza humana, só o procedimentalismo racional possibilita a reconstrução discursiva do próprio projeto de ser-humano. A discussão pública dentro das normas postas pelo tribunal constitucional será a mais eficaz maneira de encaminhar a resolução de tais problemas práticos de interpretação constitucional.

As posições ‘substancialistas’ ou de ‘realismos morais’, como apregoa Barbarosch (2007, p.206), posições morais substanciais sobre a vida sejam sociais, metafísicas, religiosas, políticas ou filosóficas, deverão ser discutidas em seus fundamentos por uma racionalidade procedimental constitucional.

Assim, exemplarmente, assegurar à mulher islâmica a possibilidade de pensar e agir com liberdade para escolher se prossegue ou não em sua cultura tradicional anti-feminina, é uma obrigação universal para com a efetivação dos direitos humanos e uma missão efetivadora das normas defendidas pelas instituições internacionais de cunho humanitário.

Assegurar a cada humano a possibilidade da liberdade e da autonomia, mesmo frente à cultura (HABERMAS 2007, p.44) e garantir aos grupos políticos oprimidos as expressões de contestação pública, são planos de validade superior dos direitos humanos, que são sim universais, mas não absolutos na forma de implementação que não pode ser impositiva e violenta, a exemplo das invasões a nações sem autorização e ampla discussão na Organização das Nações Unidas o que fere o princípio da autodeterminação dos povos.

5. Conclusão

O procedimentalismo constitui um meio de incidência do discurso e da razão crítica na problematização e possibilitação de resolutividade de conflitos em uma sociedade pós-tradicional. O possível equilíbrio na aplicação do Direito entre facticidade e validade passa pelo confrontamento entre os elementos político-ideológicos e o Direito. Confiar no diálogo como mecanismo prioritário de resolução de conflitos e institucionalizar e ampliar as condições dialógicas é a meta mor de todo o governo democrático e racional, ideal de uma situação de democratização constitucional. O papel do tribunal constitucional implica, pois, em mediar as posições das minorias com a maioria através da equânime construção de pontes de diálogo garantida pelo sistema de direitos e pela ampliação dos canais de debate.

O sistema de direitos protegido pelo tribunal constitucional deve ser assegurado de modo a realizar a absorção dos conflitos políticos e a dissensões ideológicas, daí o equilíbrio entre os modelos de legitimação política (Schmitt) e jurídica (Kelsen) da jurisdição constitucional.

O grande fito da política numa democracia é atender ao bem comum dentro de um quadro de legalidade assegurado por um sistema de proteção a direitos. Num país como o Brasil, por exemplo, os canais de debate somente se aprimorarão se o sistema de direitos atuar repressivamente à violência e a desigualdade por uma forte ação estatal e, por outro lado, se construírem gradativamente canais de abertura discursiva que assegurem principalmente às minorias, a possibilidade de fala e de contestação pública.

O fato é que temos de construir aos poucos um Estado social sem se apartar da posição garantista e legalista dos direitos. A posição radicalmente procedimentalista leva à radicalização da democracia, pois põe a lume as tendências divergentes e tenta encontrar parâmetros lingüísticos para indicar soluções aos conflitos presentes na Democracia, como assevera Habermas em ‘Direito e Democracia’ (1997, p.46).

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